STJ fixa critérios para bloqueio de passaporte e CNH de devedores
Por: Luiza Calegari
Fonte: Valor Econômico
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou parâmetros básicos para a aplicação
de medidas como o bloqueio do passaporte, da Carteira Nacional de
Habilitação (CNH) e cartões de crédito de devedores, para garantir o
cumprimento de decisão judicial em ações de cobrança. A decisão foi proferida
pela 2ª Seção, por unanimidade. Como foi dada em recursos repetitivos,
orientará os magistrados das varas e demais tribunais do país.
Para especialistas, o estabelecimento desses critérios pelo STJ dá margem para
o aumento do uso desse tipo de medida no Judiciário. A constitucionalidade da
adoção das “medidas executivas atípicas” já foi reconhecida pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), no ano de 2023 (ADI 5941). Faltava a 2ª Seção do STJ
determinar os parâmetros que os juízes devem seguir para aplicar.
O STJ julgou dois casos do banco Daycoval contra devedores. Em um deles,
a instituição questiona decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que
negou o bloqueio do passaporte, CNH e cartões de crédito de um devedor com
dívida superior a R$ 400 mil (processo nº 2041664-45.2021.8.26.0000).
No outro caso, o Daycoval pede os mesmos bloqueios contra uma empresária
do ramo de aço que deve cerca de R$ 300 mil por um financiamento cuja
garantia não existe mais. Tanto a sentença quanto a decisão do TJSP indeferiram
o pedido (processo nº 2272477-42.2019.8.26.0000).
Os ministros da 2ª Seção do STJ acompanharam o entendimento do relator, o
ministro Marco Buzzi. Ele estabeleceu como critérios mínimos: a necessidade
de fundamentação que aborde as especificidades do caso para justificar a
medida; que, de preferência, só seja adotada após tentativas dos meios típicos
de quitação da dívida, como a penhora; que seja respeitado o direito ao
contraditório; e que sejam levados em conta os princípios da efetividade e da
menor onerosidade para o devedor (Tema 1137).
A decisão também precisa ser específica em relação à duração temporal da
medida atípica, diz a decisão, para que a punição não se estenda
indefinidamente. As regras valem apenas para as dívidas civis, a exemplo de
contratos, exceto para o pagamento de pensão alimentícia. Elas não podem ser
aplicadas, portanto, nos casos de cobranças fiscais, conforme entende a 2ª
Seção.
Durante a sessão de julgamento, os ministros também debateram a necessidade
de apresentação de indícios de que exista patrimônio para quitar a dívida. Mas
o requisito foi derrubado. A ministra Isabel Gallotti defendeu sua manutenção,
mas os demais membros do colegiado entenderam que essa exigência poderia
inviabilizar os pedidos, nos casos concretos que cheguem à Justiça.
Três entidades se manifestaram durante a sessão. Segundo o Instituto Brasileiro
de Direito Processual (IBDP), representado por Clarisse Frechiani, os
precedentes escolhidos pelo STJ foram “pobres”, com circunstâncias parecidas,
envolvendo o mesmo banco. Para a entidade, havia um risco de o STJ enunciar
“um precedente genérico” e impedir o conhecimento de novos recursos com
base em casos específicos.
Já Anselmo Moreira Gonzalez, representando a Federação Brasileira de Bancos
(Febraban), lembrou que o STJ já tinha reconhecido a possibilidade das medidas
executivas atípicas no Tema nº 1.000 de recursos repetitivos. Na ocasião, os
ministros entenderam que é possível a aplicação de multa se algum documento
exigido não for exibido, "após tentativa de busca e apreensão ou outra medida
coercitiva".
Além disso, as medidas atípicas só podem ser aplicadas quando há
descumprimento deliberado de ordem judicial, destacou a advogada Ana
Carolina Caputo Bastos, que representava o Fórum Permanente de
Processualistas Civis. “É um devedor que zomba da justiça, que, apesar de ter
contra si decisão transitada em julgado, não cumpre ordem judicial”, afirmou.
Especialistas afirmam que os critérios definidos devem levar ao aumento do
uso de medidas atípicas nas execuções. Em um primeiro momento, dizem,
porque os processos sobre o tema, que estavam suspensos até o julgamento,
voltarão a tramitar. Depois, o volume de pedidos também deve se multiplicar.
Para Clarisse Frechiani, que defendeu o IBDP, a tese fixada está coerente com
o que a doutrina recomenda e a jurisprudência já aplicava. A remoção da
exigência de comprovação da existência de patrimônio para satisfazer a dívida,
contudo, segundo ela, poderá desvirtuar a aplicação justa da medida. “A ideia é
que essas medidas sirvam para fazer com que a pessoa que tem patrimônio e
não quer pagar, pague, e não para penalizar quem não pode pagar”, afirma.
Elias Marques de Medeiros Neto, sócio do TozziniFreire, entende que a Corte
perdeu a oportunidade de diferenciar medidas executivas "puramente
coercitivas" de outras medidas que pudessem afetar mais diretamente o
patrimônio do devedor, como o bloqueio do PIX e dos bens, multa diária sobre
o valor da dívida e quebra de sigilo bancário.
"Estas últimas medidas, por terem viés primordialmente patrimonial, não
necessariamente precisariam ser subsidiárias”, diz. “A Corte Especial do STJ
poderia ter fixado que a subsidiariedade valeria apenas para técnicas
essencialmente coercitivas", como a apreensão de passaporte, CNH ou
bloqueio de cartão de crédito.
Ele também acredita que a decisão do STJ vai estimular a adoção das medidas,
mas que os casos continuarão chegando às Cortes superiores. "Creio que
critérios menos genéricos poderiam ser mais explorados na fixação da tese, pois
evitaríamos incertezas a serem vividas em cada caso concreto", opina.
Já Tatiana Kauffmann, sócia do Cascione Advogados, entende que a solução
encontrada pelo STJ resguarda o interesse das duas partes. "A decisão privilegia
o credor, conferindo mais meios para que ele busque a satisfação do crédito e,
ao mesmo tempo, confere segurança ao devedor, que não deverá ter aplicadas
contra si, indiscriminadamente, as medidas coercitivas atípicas", diz.